13 de agosto de 2009

Caranguejola - Mário de Sá Carneiro


Ah, que me metam entre cobertores,

E não me façam mais nada!...

Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,

Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...

Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...

Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado

Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.

P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...

Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?

Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,

E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...

Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -

P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,

P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?

Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.

Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?

E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?

Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -

E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará

P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?

Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -

Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;

Em Paris, é preferível, por causa da legenda...

De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;

E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,

Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.

Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras.

Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Mário de Sá Carneiro

15 de abril de 2009

O Pêndulo

Recordo avisos pendulares
Enquanto espero pelo balanço
Assim o ditam doutos falares
Em vão lhes digo quanto me canso

Sento-me, bem quieta, aguardando...
O que balança? Entre quê e quê?
Se há algo em que ainda mando
É naquilo que nenhum de vós vê.

Imaginário, o ponto fixo?
A vossa percepção delibera?
Sereis vós os agarrados à esfera?

Pois faço parte do pêndulo, sim.
Julgais-me a esfera de oscilação?
Não! Sou o ponto de sustentação.

23 de fevereiro de 2009

Uno

Volto, de novo, a estas minhas divagações, às voltas com o sentido da vida, do mundo, das emoções. E se estes apuros são, para muitos, mais próprios da adolescência, espero estar a mover-me em espiral. Haverá sempre um ponto de retorno mas, talvez para não sentir a inutilidade de mim, me julgue agora numa oitava acima.

Houve livros que, em tempos de "armário", me deram a conhecer todo um outro plano de vida que, no ocidente, me era completamente desconhecido. Ao voltar a lê-los, tantos anos mais tarde, apercebi-me que era mais a minha imaginação que lhes dava alguma cor. Mas que importa, se me ensinaram a voar?

Fiquei com as sementes das viagens astrais, das auras, das meditações de quem não tem medo de ficar frente a frente consigo próprio...

A civilização ocidental, que convém não esquecer que é a minha, vive no concreto, usando parâmetros físicos para definir tudo, até mesmo o que não o é. No entanto, a realidade concreta, o que vemos, não é senão aquilo que os nossos nervos ópticos transmitem ao cérebro. Assim, da árvore que vejo, só posso afirmar que é a imagem que me é permitido ver.

Com o ingénuo intuito de encontrar coerência entre opostos, tento, humildemente, analisar diferenças entre o material e o imaterial para, depois, os tentar fazer convergir num todo.

As sementes daqueles livros lidos há já tanto tempo foram germinando em mim. A plantinha que cresce agora deixa-me entrever um mundo em que tudo é vivido, e sentido, de outra forma. Mais fluida. Menos cheia de certezas. Comecei a sentir outras realidades que, exactamente por se distanciarem do minúsculo, dão imensa importância à pequena erva que pisam. A folha que cai aos meus pés no Outono e o cometa que passa estão tão ligados entre si como ao que eu sinto, como ao meu corpo, como ao que eu sou.

E se estou triste, alguma lágrima cairá nalgum ponto do Universo.

A minha pequenez, a pequenez de todos nós, é a imensidão desse Universo. Somos sua pertença, como ele é nossa.

Espero respeitá-lo como ele me respeita e que me pemita que a tal plantinha que cresce, se torne um dia árvore que dê flor, flor que alguém possa colher, amar e entender que, em cada pétala, pulsam todos os Universos.

29 de janeiro de 2009

Afectos entre mundos

A avó

Adoro o meu neto.

Sou a típica avó que os pais detestam, porque deseduca. Quero lá saber! Para a minha nora, estou-me nas tintas. O facto de toda a gente comentar que ele é muito parecido com a mãe, para mim, não passa de uma coincidência e até comprova que há realmente pessoas lindas parecidas com outras que o não são. A opinião do meu filho também não me interessa nada, que sou muito mais avó deste neto que alguma vez fui mãe.

Aqui só existe um laço familiar: o meu com ele.

Como o pai dele voltou cá para casa depois do divórcio, o meu neto vem aos fins-de-semana, nas férias… E sentamo-nos os dois no sofá, os dois preguiçosos, os dois a ver o mesmo filme, os dois crianças…

O meu filho não lhe liga muito. Talvez esteja a ser um pai igual à mãe que eu fui. Nem sei se o meu neto repara nisso, já que o avô e eu compensamos largamente o carinho e a atenção que o pai não lhe dá.

E ele é tão doce… Com treze anos, aquela idade parva em que os miúdos se tornam insuportáveis, continua suave, terno, sensível, sabe conversar e opinar as tontices próprias da adolescência sem ser agressivo. Até o meu marido, habituado desde que me conhece a existir só para mim, por mim e em mim, gosta deste nosso neto.

Este menino é de tal forma especial que todos concordarão comigo depois do que vou contar.

O meu marido, de tristeza, começou a adoentar-se. Desequilibrava-se na rua, perdia o norte das conversas… Acabou por ter que ir para o hospital. Voltou pior, mas já ninguém podia fazer nada.

Encolhido na cadeira de rodas, cabeça baixa, olhando quase só para dentro de si, ia-se ausentando. Era de tal forma evidente este começo de partida que até o nosso filho tomou por hábito, durante a sesta diária do pai, ir sorrateiramente encostar o ouvido à porta do quarto, para se assegurar que ainda respirava.

Num fim-de-semana, tinha que ser logo num fim-de-semana!, ao cumprir o ritual diário, ouviu dentro do quarto uma paz que o aterrorizou.

Abriu a porta, acendeu a luz e comprovou que o meu marido já não dormia a sesta. O meu marido morria a sesta, de olhos bem abertos. E não entrou. Não conseguiu dar um passo. Mas conseguiu abrir a boca e gritar pelo meu neto, que era o único em casa naquele momento.

O menino, magro e louro – ele é mesmo assim, não pensem que são babosices de avó -, veio até ao quarto, passou para além do pai, fechou os olhos do avô, deu-lhe um beijo na testa e, com voz de nuvem, disse: O avô morreu, pai. Assim. Simplesmente. Sem pontos de exclamação.

E eu sei a dor que sentiu. E quanto lhe pesou ter a força que ao pai faltou.

Dei-lhe tanto amor naquela hora…

Espero que tenha sentido todas as carícias, todos os beijos, toda a doçura com que o embalei.

Eu, que morri seis meses antes deste dia em que o meu menino cresceu mais que o próprio pai, tive ao menos a decência de não o fazer à frente dele.